sĂĄbado, 18 de outubro de 2025

Medo de divergir: Espiral do silĂȘncio da OAB e juristas facilita caminho para abusos do STF

Gazeta do Povo

Uma das dificuldades de jornalistas na cobertura dos abusos recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) Ă© encontrar juristas que tenham a coragem de se expor analisando francamente o que ocorre.

O problema nĂŁo Ă© a falta de profissionais que percebam os equĂ­vocos nos atos dos ministros; pelo contrĂĄrio, Ă© provĂĄvel que eles sejam uma grande parcela dos juristas do paĂ­s. No entanto, ainda sĂŁo exceçÔes aqueles que estĂŁo dispostos a falar publicamente sobre o tema. O silĂȘncio tornou-se a norma entre juristas influentes, docentes e entidades de classe.

Os motivos, segundo diversos juristas consultados pela reportagem, sĂŁo variados: temor de retaliação, cĂĄlculo de carreira, conveniĂȘncia institucional, adesĂŁo ideolĂłgica, fadiga moral e falta de respaldo coletivo, entre outros.

“NĂŁo Ă© incomum ouvir crĂ­ticas privadas aos flagrantes excessos dos julgamentos mais recentes; porĂ©m, raras sĂŁo as exposiçÔes pĂșblicas. Pode haver medo de retaliação, atĂ© mesmo no Ăąmbito policial ou judicial. PorĂ©m, creio que a maior preocupação seja com a possibilidade de ser tomado como um direitista. Esse temor cresce entre aqueles que tĂȘm carreira acadĂȘmica”, diz Janaina Paschoal, professora livre-docente de Direito Penal na USP e vereadora de SĂŁo Paulo (PP).

“Muitos advogados, juĂ­zes e promotores me procuram em privado, dĂŁo apoio, mas nĂŁo falam o que pensam. O medo Ă© de serem perseguidos ou vistos como inimigos do poder”, afirma AndrĂ© Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressĂŁo.

Em muitos casos, o que ocorre remete ao conceito de “espiral do silĂȘncio”, formulado pela cientista polĂ­tica alemĂŁ Elisabeth Noelle-Neumann (1916-2010): um ciclo em que o custo de discordar se torna alto demais, e o silĂȘncio Ă© reforçado Ă  medida que mais vozes se calam. Quem discorda evita se manifestar, e quem se manifesta fica cada vez mais isolado.

O medo de retaliaçÔes Ă© um dos fatores centrais do silenciamento. Advogados e professores relatam riscos reais de sançÔes, perseguiçÔes ou investigaçÔes judiciais para aqueles que fazem crĂ­ticas pĂșblicas ao JudiciĂĄrio. A sensação de insegurança jurĂ­dica, associada Ă  fragilidade das prerrogativas da advocacia, tende a gerar uma cultura de autocensura.

Para Jorge Augusto Derviche Casagrande, advogado especialista em Direito Empresarial e compliance, “faltam, sem dĂșvida, manifestaçÔes corajosas de entidades acadĂȘmicas, associaçÔes e da prĂłpria OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]”.

“Vivemos um tempo de omissĂŁo institucional. A hombridade dos juristas parece ter sido substituĂ­da por um cĂĄlculo de sobrevivĂȘncia. E, sim, entendo quem se cala. Eu tambĂ©m me calo muitas vezes. Tenho uma filha pequena e desejo vĂȘ-la crescer com o pai presente. Isso me obriga a pesar cada palavra e a evitar qualquer contundĂȘncia que possa me transformar em alvo num sistema em que as prerrogativas da advocacia, hoje, infelizmente, sĂŁo meramente formais”, afirma.

Para ele, a autocensura Ă© “mais insidiosa e prevalente” no Brasil do que a prĂłpria censura imposta pela força. “Juristas sĂ©rios e estudiosos, conscientes dos abusos que se acumulam nas instituiçÔes, veem-se compelidos ao silĂȘncio por razĂ”es que vĂŁo do medo real Ă  fadiga moral. E eu considero isso completamente compreensĂ­vel do ponto de vista humano”, diz.

NĂŁo apenas os formadores de opiniĂŁo com influĂȘncia, mas instituiçÔes que teriam o dever de se pronunciar, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e entidades acadĂȘmicas do Direito, mantĂȘm-se caladas, mesmo diante de abusos flagrantes.

A OAB federal, por exemplo, tem evitado tomar atitudes firmes mesmo quando direitos e prerrogativas de advogados sĂŁo claramente desrespeitadas. Em casos recentes, como a reclamação feita pela defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro e de aliados sobre a falta de acesso Ă s provas completas das denĂșncias sobre a suposta tentativa de golpe de Estado, a entidade permaneceu omissa.

“O caso da OAB Ă© imperdoĂĄvel, realmente. Nesse julgamento [envolvendo Bolsonaro] de terça e de quarta, a gente viu violaçÔes muito crassas Ă s prerrogativas da advocacia que nĂŁo tiveram, nem de longe, a devida repercussĂŁo, muito menos junto Ă  OAB. A primeira delas foi o caso do doutor SebastiĂŁo [Coelho, advogado], que foi impedido de adentrar nas dependĂȘncias do tribunal. Qualquer pessoa – um jornalista, outras pessoas que exerçam profissĂ”es que nĂŁo tĂȘm absolutamente nada a ver com o mundo jurĂ­dico – pode ir atĂ© aos tribunais assistir ao julgamento. NĂŁo hĂĄ nenhum impeditivo a isso. Foi uma violação crassa. E a OAB emitiu uma nota meramente protocolar, nĂŁo tomou uma providĂȘncia prĂĄtica, nem sequer mandou uma notificação, ainda que fosse para inglĂȘs ver, uma notificação ao ministro, absolutamente nada”, critica a consultora jurĂ­dica Katia MagalhĂŁes.

A OAB foi consultada sobre o assunto pela reportagem da Gazeta do Povo. Em caso de resposta, o texto serĂĄ atualizado.

Carreirismo Ă© outro fator para o silĂȘncio dos juristas ante abusos do STF

Para Katia, outra omissĂŁo escandalosa Ă© a da elite acadĂȘmica, incluindo reitores e diretores de faculdades de Direito. A presença constante de ministros do Supremo como figuras centrais em faculdades e universidades – seja ministrando aulas magnas, seja ocupando cargos simbĂłlicos – contribui para esse efeito. Dentro desse ambiente, fazer crĂ­ticas ao JudiciĂĄrio se torna uma forma de comprometer a prĂłpria trajetĂłria. O espaço acadĂȘmico, que deveria garantir liberdade de cĂĄtedra, passa a operar sob o peso de um cĂłdigo tĂĄcito de conveniĂȘncia.

“Eles nĂŁo querem cair em listas negras da elite do meio jurĂ­dico”, afirma Katia. “Primeiro, hĂĄ a influĂȘncia dos togados no meio acadĂȘmico. Isso Ă© um fator extremamente relevante. Os figurĂ”es do JudiciĂĄrio ocupam cĂĄtedras em universidades. Nesta sexta-feira, por exemplo, nĂłs tivemos atĂ© uma aula magna – mais uma –, do ministro Barroso na UERJ, defendendo todos os seus prĂłprios abusos. E muitos advogados que tĂȘm pretensĂ”es acadĂȘmicas ou jĂĄ estĂŁo na academia notam que criticar togados e, sobretudo, togados de cĂșpula, pode acarretar um prejuĂ­zo sĂ©rio Ă  ascensĂŁo na carreira”, acrescenta.

Alguns juristas tambĂ©m optam pelo silĂȘncio como estratĂ©gia de autopreservação na carreira. Profissionais com ambiçÔes de chegar aos tribunais superiores por meio do quinto constitucional evitam desagradar os ministros que, direta ou indiretamente, participam dessas nomeaçÔes. No meio acadĂȘmico, o receio de comprometer cĂĄtedras e convites a eventos institucionais tambĂ©m pesa contra qualquer crĂ­tica mais incisiva ao STF.

“Muitos advogados, atĂ© muito bem situados, que ganham alguns milhĂ”es por mĂȘs nos seus escritĂłrios, aspiram a vagas nos tribunais. E essas vagas sĂŁo conseguidas pelo quinto constitucional. Para entrarem nas listas do quinto constitucional, eles tĂȘm que ter a anuĂȘncia dos tribunais e, Ăłbvio, eles tĂȘm que ser visto com bons olhos pelo pessoal de cima. Eles sabem que, se criticarem todos esses abusos, o nome deles nunca vai constar em uma dessas listas”, relata Katia MagalhĂŁes.

A tudo isso soma-se uma cultura antiga, jĂĄ enraizada na advocacia: a de evitar confronto direto com juĂ­zes e tribunais. EscritĂłrios dependem de manter boas relaçÔes com o foro e muitas vezes evitam crĂ­ticas mesmo quando hĂĄ consciĂȘncia tĂ©cnica sobre abusos. Essa mentalidade, que jĂĄ existia, foi acentuada pelo novo cenĂĄrio polĂ­tico-jurĂ­dico.

“Quem nĂŁo prefere tomar um cafĂ© ou ir jantar com um ministro em vez de rivalizar com ele de forma contundente a ponto de colocar-se em risco?”, questiona Casagrande. “A espiral do silĂȘncio nĂŁo Ă© sĂł fruto do medo, muito embora ele tome um papel preponderante. Eu entendo que ela Ă© consequĂȘncia de uma engenharia institucional que desincentiva, por meio de violĂȘncia, o pensamento crĂ­tico e premia a obediĂȘncia silenciosa. E isso tem um preço altĂ­ssimo, nĂŁo apenas para os juristas, mas para a sociedade como um todo.”

Formação ideolĂłgica agrava o silĂȘncio

A carga ideolĂłgica da formação universitĂĄria dos juristas aprofunda ainda mais o quadro de silĂȘncio sobre os abusos do JudiciĂĄrio. CrĂ­ticas ao Supremo sĂŁo muitas vezes vistas como indĂ­cio de alinhamento com a direita no meio acadĂȘmico. O risco de estigmatização gera um segundo tipo de censura.

“A classe jurĂ­dica brasileira, por questĂ”es complexas de formação, tem uma adesĂŁo muito frĂĄgil ao Estado de Direito liberal e uma visĂŁo segundo a qual o bolsonarismo Ă© um mal a ser destruĂ­do a qualquer custo. Essas pessoas acabam apoiando o Alexandre. Se vocĂȘ pegar uma parte da classe jurĂ­dica, a parte universitĂĄria, que dĂĄ aula nas universidades, vocĂȘ vai ver que 90% ou mais apoiam o Alexandre de Moraes. Foram formados em um meio muito pouco liberal, mais favorĂĄvel ao socialismo ou a algum tipo de social-democracia mais Ă  esquerda. Essas pessoas acabam apoiando o Alexandre, porque veem nele uma barreira contra o bolsonarismo”, explica Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP.

A defesa dos ministros do STF, nesse ambiente, passa a ser encarada como um dever ideolĂłgico. A dissidĂȘncia Ă© confundida com traição.

“Os juristas formadores de opiniĂŁo sĂŁo, em sua maioria, mais ligados Ă  esquerda. Nesse contexto, existe o medo de, ao apontar os excessos, ou mesmo as flagrantes nulidades, enfraquecer a esquerda ou mesmo fortalecer a direita”, afirma Janaina Paschoal.

O silĂȘncio nos ambientes de formação nĂŁo decorre apenas de alinhamentos ideolĂłgicos. Em muitos casos, professores enfrentam o dilema de lidar com uma jurisprudĂȘncia que jĂĄ nĂŁo reflete os fundamentos constitucionais que deveriam ensinar.

Docentes veem-se diante da escolha entre repetir os manuais ou reconhecer, em sala de aula, que a prĂĄtica atual do JudiciĂĄrio se afasta da teoria – o que, por si sĂł, pode ser interpretado como um gesto de oposição. “Conheço colegas advogados, magistrados, promotores, conselheiros de contas e policiais que vivem essa tensĂŁo entre a consciĂȘncia tĂ©cnica e o risco institucional”, afirma Jorge Casagrande.

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