quinta-feira, 5 de junho de 2025

Léo Lins condenado por piadas é o retrato do Brasil

Gazeta do Povo

A cada dia, o Brasil parece se consolidar como o paraíso das aberrações jurídicas. Aqui, um humorista pode ser punido por suas piadas com mais severidade do que um sequestrador – algo tão inusitado que desafia qualquer lógica. Infelizmente, a condenação do humorista Léo Lins a mais de oito anos de prisão – além do pagamento de multa equivalente a 1.170 salários mínimos e indenização de R$ 300 mil por danos morais coletivos – por piadas feitas durante um show de stand-up em 2022 não é um episódio isolado ou acidental. Trata-se de um símbolo preocupante de um país que passou a tratar o riso como ameaça e a sátira como delito.

Segundo a sentença, ainda em primeira instância, Léo Lins teria cometido crime de violação dos direitos da pessoa com deficiência e de racismo durante um show, posteriormente disponibilizado no YouTube. A base legal da condenação está na chamada “Lei Antipiada” – a Lei 14.532/23, sancionada pelo presidente Lula, que equiparou a injúria racial ao crime de racismo e previu penas mais severas quando a suposta ofensa ocorre em contexto de humor. Com isso, o ordenamento jurídico brasileiro corre o risco de ter inaugurado um precedente perigoso: o de dar brecha para punir com mais rigor quem fala com o intuito de divertir do que quem o faz com real animosidade. Como apontam diversos juristas, não há qualquer razoabilidade na sentença proferida contra o humorista.

A sociedade que permite que a Justiça condene um comediante por fazer piadas é a mesma que aceitará calar colunistas, artistas, professores e, por fim, cidadãos comuns. O humor, mesmo quando incômodo ou de gosto duvidoso, faz parte da pluralidade democrática

O show de Léo Lins alvo da condenação, de fato, estressa os limites da liberdade de expressão, e pode gerar desagrado pela forma com que brinca com vários aspectos da natureza humana – incluindo os mais desagradáveis, controversos ou mesmo repulsivos –, mas a intenção do humorista não nos parece ser caluniar, difamar, injuriar ou ferir algum grupo específico ou quem quer que seja. E a doutrina penal é clara ao reconhecer a relevância da intenção do agente – o chamado animus. No campo da liberdade de expressão, é particularmente importante distinguir o animus jocandi, ou seja, a intenção de fazer humor, do animus discriminandi, a intenção deliberada de ofender ou promover discriminação. Quando a análise do conteúdo se dissocia desse elemento subjetivo essencial, corre-se o risco de criminalizar opiniões, posturas artísticas ou formas de expressão que não guardam correspondência com o dolo exigido pela lei penal. Apenas quando a piada é utilizada como meio para levar a cabo uma intenção criminosa – seja caluniar, injuriar, estimular preconceito ou desumanizar – ela pode e deve ser punida. Mas, não havendo essa intenção, trata-se de mero exercício da liberdade de expressão, o que se aplica mesmo quando a piada é exagerada, de mau gosto ou insensata.

O cerne da crítica à sentença contra Léo Lins reside exatamente nesse ponto: é difícil sustentar, com seriedade, que o humorista tenha agido com intenção discriminatória. As piadas foram proferidas em um espetáculo cômico, pago, com plateia voluntária, dentro dos limites do gênero stand-up, que se baseia justamente em provocações e exageros. A existência do animus jocandi, a intenção de brincar, nesse caso, parece evidente – o que deveria funcionar como excludente de ilicitude. No entanto, o Judiciário tratou o comediante como se tivesse praticado um atentado deliberado contra a dignidade humana.

O humor amordaçado (editorial de 18 de maio de 2023)
Léo Lins já havia sido alvo de decisões questionáveis da Justiça por conta de suas piadas. Em maio de 2023, o humorista foi submetido a uma série de medidas cautelares, incluindo restrições a viagens, remoção de conteúdos nas redes sociais e, o mais absurdo, a censura prévia – pela proibição de fazer novas menções aos grupos “ofendidos” em seus futuros shows. À época, a Justiça atendeu a um pedido do Ministério Público de São Paulo, que denunciou Lins alegando que o humorista estaria “reproduzindo discursos e posicionamentos que hoje são repudiados”, mencionando em suas piadas temas como escravidão, perseguição religiosa, minorias e pessoas idosas e com deficiência. Mais tarde, o humorista foi tornado réu e, agora, condenado.

A liberdade de expressão, ainda que não seja absoluta, é um dos pilares da democracia. Seu exercício pode ser regulado quando colide com outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana. Mas essa regulação deve ocorrer com critérios justos, equilibrados, orientados pela deferência ao direito à liberdade de expressão, em respeito ao devido processo legal e à proporcionalidade. O combate à discriminação e ao preconceito é tarefa necessária, mas não pode servir de justificativa para fazer do Estado o árbitro do que pode ou não ser dito em um palco de comédia. Como bem pontuou o jurista André Marsiglia: “Piada é discurso ficcional comparável à arte, e a arte não pode estar submetida a quem se ofende com ela. Sentir-se ofendido não significa que houve intenção de ofensa – e o que o direito pune é a intenção de quem fala, não o sentimento de quem ouve”.

Rir, por vezes, incomoda. Mas o incômodo não pode se tornar critério penal. A sociedade que permite que a Justiça condene um comediante por fazer piadas é a mesma que aceitará calar colunistas, artistas, professores e, por fim, cidadãos comuns. O humor, mesmo quando incômodo ou de gosto duvidoso, faz parte da pluralidade democrática. Ninguém é obrigado a rir das piadas de Léo Lins, e qualquer um que não goste do tipo de humor que ele faz pode se mobilizar, individual ou coletivamente, para manifestar essa rejeição, por meio da crítica, do debate e da rejeição social. A condenação a Léo Lins é equivocada e exagerada – mais um duríssimo golpe contra a liberdade de expressão no país. Que as instâncias superiores da Justiça brasileira possam ter a sensibilidade – e o bom senso – de reverter essa decisão absurda.

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